1. Neste Ano da Eucaristia, tanto João Paulo II como Bento XVI, nos pediram que celebrássemos, com especial solenidade, esta Festa do Corpo de Deus. Esta celebração, na Praça do Município e a solene procissão, que nos conduzirá, em atitude de adoração, até à Catedral, são cumprimento desse desejo. Correspondamos, com fé mais profunda e renovada intensidade interior a este apelo de adoração eucarística. Estamos reunidos na Praça que, simbolicamente, representa a Cidade; percorreremos com a Santa Eucaristia, o centro da velha Lisboa; em ano de “missão na cidade”, quero meditar convosco a relação da Eucaristia com a Cidade, o sentido misterioso dessa co-habitação contínua de Cristo Vivo no meio de nós.
Tomemos consciência desta realidade misteriosa: Cristo vivo vive permanentemente connosco, na nossa Cidade e só Ele conhece e pode avaliar a fecundidade misteriosa dessa presença. Se é verdade que Deus age onde existe, é também verdade que actua onde está, porque para Jesus Cristo ressuscitado, viver no meio do Seu Povo, significa sempre amor infinito e transformador.
Cristo está na Cidade, porque vive no meio do Seu Povo. A Eucaristia é a expressão mais forte do cumprimento da promessa do Senhor ressuscitado de ficar com os Seus discípulos até ao fim dos tempos. Por isso, a presença de Cristo vivo na Igreja, verdadeiro centro da vida de fé e de caridade, acaba por definir o sentido da própria Igreja na Cidade. Porque Cristo habita connosco, a Igreja só pode amar a Cidade, anunciar continuamente o amor, ser grito de esperança e testemunho de vida.
O primeiro sentido da presença de Cristo vivo no meio de nós, é a promessa da vida, o anúncio de que a vida é possível e pode ser plenamente vivida. A vida não é fácil nesta Cidade. Há sofrimento silencioso, lágrimas solitárias, egoísmos assassinos, condições sociais aviltantes, pobreza envergonhada. Há também o entusiasmo de quem quer sorver a vida em tudo o que ela pode oferecer imediatamente, sem horizonte de profundidade onde a vida se descobre como um dom e uma conquista. Muitos perderam a noção de que Deus é a fonte da vida e que vale a pena procurá-la n’Ele e vivê-la com Ele.
Mas há também tanto amor, tanto sofrimento oferecido, tanta alegria partilhada, tanta doação para ajudar os outros a viver. Nós os cristãos aprendemos essa força da vida na Eucaristia, recebendo e oferecendo. Experimentamos a verdade das palavras de Jesus: “Eu sou o Pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste Pão viverá eternamente” (Jo. 6,51-52). Na Eucaristia, Cristo está na Cidade, como fonte abundante e acessível de Vida, onde todos os que procuram a vida a podem ir beber. A Eucaristia é sempre o triunfo da vida sobre todas as formas de morte, físicas e espirituais. Sempre que uma pessoa se sente amada, descobre a vida; na Eucaristia sentimo-nos amados por Deus, em Jesus Cristo e nesse amor, descobrimos a vida eterna.
Quem procura a vida na Eucaristia, transforma-se na força da Cidade. São centenas de milhares aqueles e aquelas que celebram a Eucaristia todos os Domingos, muitos procuram-na todos os dias, tantos ficam em adoração. O Domingo, o dia de Cristo ressuscitado, em que a Cidade descansa do seu trabalho normal, para quem quiser poder encontrar o Senhor, pode ser o dia decisivo da Cidade, aquele que misteriosamente lhe garante a força e traça o sentido. A nossa Cidade ainda saberá porque pára ao Domingo? Os cristãos ainda têm consciência do que significa para a Cidade a Eucaristia que celebram? Da Eucaristia que celebramos jorra uma torrente de vida, de força, de esperança, de solidariedade, que pode, através de nós, inundar silenciosamente a Cidade.
2. Fonte de vida, a Eucaristia é, na Cidade, um desafio de unidade, antes de mais na Igreja que a celebra. Ouvíamos São Paulo: “Uma vez que existe um só Pão, nós, que somos muitos, fazemos um só corpo, visto participarmos todos desse único Pão” (1Cor. 10,17). Na Igreja, a Eucaristia é a principal fonte da unidade, o que define esta como generosidade da caridade e não como busca da uniformidade. A verdadeira unidade é aquela que o amor realiza entre pessoas e chama-se comunhão. A Eucaristia realiza a comunhão de amor entre os crentes e Jesus Cristo, que nos introduz no amor de Deus, Uno e Trino, e nessa união de amor em Jesus Cristo, os cristãos experimentam, entre si, uma união de amor, fonte e garantia de todas as experiências de comunhão, nas quais procuram exprimir a vida. Quando enfraquece, na Igreja, a densidade da comunhão eucarística, aumentam e agravam-se as desuniões, na falta de amor, na dificuldade de confessar a mesma fé e de caminhar, em conjunto, para a verdade. A Eucaristia permite-nos fazer da variedade das nossas diferenças, não um risco de dispersão ou desunião, mas uma força de convergência para a unidade.
A busca de uma unidade que respeite a individualidade da liberdade e as diferenças de cada um, é também um desafio para a Cidade como um todo. E aí a construção da unidade é ainda mais frágil e ameaçada do que na Igreja e os cristãos, porque celebram a Eucaristia, são chamados a ser fermentos de unidade na sociedade. Esta está, hoje, cada vez mais fragmentada, na concepção da verdade, na definição da felicidade, na identificação do “bem-comum”, na dimensão religiosa, na própria compreensão do homem e da sua dignidade. A unidade, a este nível, só pode ser procurada através de objectivos a prosseguir, de valores a defender, de concordância sobre dimensões fundamentais como o são a defesa da vida e da dignidade do homem, da justiça, da paz. E aí o testemunho dos cristãos na Cidade pode tornar-se importante, porventura decisivo, até porque lhes compete a eles trazer para a Eucaristia todas as lutas justas por uma sociedade melhor e dar-lhe forma de “hóstia espiritual”. A Cidade, no que ela tem de melhor, torna-se eucaristia através dos cristãos e da Igreja, os únicos que sabem que também a sociedade, como um todo, é campo da acção do Espírito Santo.
3. Outra manifestação da fecundidade transformadora da presença da Eucaristia na Cidade é a renovação e actualização contínuas do envio em missão. Aquele “ide em paz” com que termina a celebração eucarística, é um autêntico reenvio em missão. Ide para o meio da Cidade, partilhai em todos as suas lutas e nas suas esperanças, enfrentai os problemas, impregnai de profundidade eucarística os vossos juízos, os vossos discernimentos, as vossas tomadas de posição. Dai testemunho da esperança que está em vós. E quando vos fraquejar a luz do discernimento ou a coragem para a acção, procurai o Senhor, adorai-O em silêncio, e Ele fortalecerá o vosso coração e iluminará a vossa inteligência. Da Eucaristia somos sempre enviados de novo para a “missão na Cidade”.
A presença eucarística de Cristo Vivo na Cidade, não é apenas um mistério escondido na intimidade dos templos. Ele co-habita com a Cidade no coração dos cristãos que o celebraram, comungaram e adoraram. Aliás a nossa Cidade de Lisboa tem a Eucaristia bem gravada na sua tradição e no seu património. Desde o esplendor das custódias, que, mesmo num museu, são um hino de louvor à transcendência da Eucaristia, até aos tronos barrocos, manifestação da Senhoria Real e da divindade de Cristo Eucarístico, até à arreigada tradição desta procissão do “Corpo de Deus”, verdadeiro cortejo real de vassalagem a Cristo, que é Senhor. Nela a Cidade reencontra-se com a Eucaristia, engalanará as janelas e prostrar-se-á nas ruas em silêncio adorante. Não se trata de uma manifestação triunfalista da Igreja que segue, humildemente, o seu Senhor; trata-se, isso sim, do triunfo de Jesus Cristo, realmente presente na Eucaristia, reconhecido por uma Cidade que O adora como seu Rei e Senhor. E neste cortejo pelas nossas ruas, Ele, Senhor e Deus, abençoará e amará a nossa Cidade.
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