1. Contemplar é deixar-se maravilhar pela acção de Deus nas criaturas, o que nos leva a mergulhar na própria beleza de Deus. Toda a contemplação começa nesse descobrir a acção de Deus em Jesus Cristo e em Sua Mãe Maria Santíssima. Neles brilha, para nós, todo o esplendor da beleza divina e só eles nos podem atrair à contemplação dessa beleza. A liturgia de hoje convida-nos a contemplar a beleza de Deus na beleza de Maria, a Imaculada, e a deixarmo-nos conduzir, por ela, à contemplação da beleza de Deus.
A proclamação da beleza de Maria é feita por duas vozes: uma vinda do Céu, a do Anjo Gabriel, e outra vinda da terra, a de Isabel. O Anjo enviado por Deus fica encantado com aquela Mulher a quem foi enviado, e saúda-a com esse tom de encantamento: “Alegra-te cheia de graça. O Senhor está contigo” (Lc. 11,28). Isabel, inundada pela luz do Espírito Santo, fica encantada com a acção de Deus em Maria e exclama: “Bendita és tu entre as mulheres” (Lc. 1,42). Ambas as exclamações significam o mesmo: na beleza de Maria, toca-se subitamente a beleza e o esplendor da divindade. Uma e outra exclamação levam Maria a reconhecer a grandeza de Deus e da Sua acção nela, em favor do Seu Povo. Essa acção de Deus ultrapassa-a de tal maneira, que ela reconhece que por isso, todas as gerações cantarão nela o amor misericordioso de Deus. Em todas as gerações, multidões continuam a proclamar, sem cessar: “Avé, ó cheia de graça! Tu és bendita entre todas as mulheres”, unindo a voz vinda do Céu e o encantamento do povo crente. O Céu e a terra convergem na proclamação da beleza de Maria.
2. Esta beleza tem a marca de Deus, é o esplendor da divindade, é plenitude de graça, diz o Anjo. Nesta palavra “graça” está o segredo, a porta que nos permite entrar neste mistério. Temos de procurar o seu significado na Palavra da Escritura, pois ela anuncia a acção de Deus em toda a criatura. A palavra grega usada “káris”, traduzida em latim por “gratia”, mas que em português se mantém na palavra “carisma”, o dom pessoalizado de Deus, significa o amor benevolente de Deus e a Sua força criadora. É curioso que o latim tenha traduzido um termo cujo sentido primeiro é a força criadora do amor de Deus, por “graça”, que evoca a benevolência, a bondade e a misericórdia. É que Deus amou-nos nos nossos pecados. São Paulo percebeu, como ninguém, que o pecado não impediu Deus de nos amar e que esse amor é cheio de bondade e de misericórdia, “benevolência da Sua vontade”. Fazer resplandecer no homem pecador o esplendor da santidade divina, mostra bem a força criadora desse amor. “Onde foi grande o pecado, foi bem maior a graça, para que, assim como o pecado havia reinado através da morte, do mesmo modo a graça reine através da justiça, para a vida eterna, por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Rom. 5,20-21). Esta força transformadora do amor identifica-a Paulo com a acção do Espírito Santo que foi derramado nos nossos corações.
Deus não deixou de amar os pecadores. Mas o fruto próprio da graça é que os pecadores possam responder ao amor com que são amados, pois o amor é sempre comunhão de vida, encontro de duas pessoas que se elevam à dignidade de amar quem as ama. Por isso na graça há sempre dois momentos: a acção do amor misericordioso de Deus e a resposta de amor por parte da criatura. Poder responder ao amor é o sinal claro que deixámos que Deus nos mudasse o coração. Vamos contemplar estes dois momentos da graça em Maria, a cheia de graça.
3. O primeiro problema que se nos apresenta é perceber se em Maria, a Imaculada desde a sua Conceição, a graça teve o sabor misericordioso e benevolente do amor de Deus pelos pecadores. A Conceição Imaculada de Maria como depois a Encarnação do Verbo eterno de Deus no seu seio, são o clímax, o ponto de chegada máximo do amor redentor de Deus. Nela o amor misericordioso de Deus pela humanidade pecadora atingiu o efeito máximo da sua força recriadora. A leitura do Livro do Génesis lembra-nos que só se pode acolher a beleza de uma mulher imaculada desde a sua conceição, se não esquecermos a primeira mulher, criada por Deus com tanta beleza e expectativa, aquela que humanizou o homem e foi a matriz da vida. O coração da mulher encerrava a maior expectativa de Deus acerca da humanidade e por isso a sua corrupção personificou o drama do pecado. Compreende-se que, no desígnio insondável de Deus, o anúncio definitivo da esperança da salvação, começasse na geração de uma mulher, imaculada na sua concepção, pois o coração imaculado da mulher sempre Deus o considerou o maior tesouro da humanidade, anúncio vivo da esperança da redenção. Imaculada, a mulher volta a ser a matriz da vida plena, torna possível que a sua descendência, “o fruto bendito do seu ventre”, esmague a cabeça da serpente e a esperança da vida renasça para toda a humanidade. Na conceição de Maria exprime-se o amor misericordioso de Deus por toda a humanidade pecadora. Nela volta a ser possível o plano eterno de Deus “que nos escolheu, antes da criação do mundo a fim de sermos, na caridade, santos e irrepreensíveis diante d’Ele. Destinou-nos a sermos seus filhos adoptivos mediante Jesus Cristo, por benevolência da Sua vontade, para louvor da glória da Sua graça” (Efs. 1,5-6). Maria é membro de uma humanidade pecadora; ela é a expressão máxima do fruto da misericórdia.
4. Mas a graça resplandece, também, na resposta da pessoa amada. E o poder responder é o primeiro fruto da graça. Em Maria, a graça resplandece, antes de mais, na sua obediência de fé, no deixar com que o amor com que é amada resuma a sua vida e trace o seu destino. “Eu sou a Tua serva; faça-se em mim segundo a Tua Palavra” (Lc. 1,38). É essa atitude de Maria que comove Isabel: Tu és bem-aventurada porque acreditaste na Palavra do Senhor (cf. Lc. 1,45). São Bernardo, nos seus Sermões em louvor da Virgem Maria, identifica esta obediência da fé com o seu coração virginal. A rebeldia da vontade é sempre, em todos nós, o maior combate da graça no caminho da santidade. Sentir-se amado por Deus e não obedecer ao amor, não deixar que ele comprometa a nossa vida, eis o contra-senso que tolda a nossa fé e o nosso caminho de fidelidade. Mas o esplendor da graça brilha em Maria sobretudo na radicalidade com que assume uma missão misteriosa, decidida por Deus, mas a ser vivida por ela. Que confiança foi preciso ter ao tornar-se visível uma maternidade que não podia explicar; o seu coração tinha de se abrir sempre de novo ao mistério daquele Filho, que aos 12 anos já confundia os Doutores da Lei, curava os doentes e ressuscitava os mortos; que humildade para abraçar com amor de Mãe o sofrimento de um Filho perseguido, desde a fúria de Herodes até à crueldade do Calvário. Aquele cumpra-se em mim a Tua Palavra, renova-se em cada etapa, aprofunda-se em cada acontecimento. Se a sua maternidade foi misteriosa desde o início, ela toca a amplitude do desígnio de Deus quando ouve aquela última palavra do seu Filho agonizante: “Mulher eis o teu filho”. Toda a salvação passa a ser, também, o fruto bendito do seu ventre. A mulher volta a ser o tesouro da humanidade, porque volta a ser a matriz da vida. Como terá percebido o drama do pecado no mundo e a relação entre a Cruz e a vida? É certamente por isso que, por caminhos misteriosos próprios da Rainha coroada de glória, continua a ser peregrina deste mundo, tão atingido pelo pecado e tão marcado pelo sofrimento, sobretudo o sofrimento dos inocentes.
Podemos confiar-lhe a nossa vida como um filho se abandona ao colo da Mãe. Podemos proclamá-la a mais bela das criaturas, dizendo-lhe com ternura e encanto: “Tu és bendita entre todas as mulheres”.