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1. O Natal é uma festa simpática. Não se reveste, aparentemente, da dramaticidade da Cruz nem da exigência transformadora da Ressurreição. Tem a beleza humana de uma criança que nasce – “Um Menino nasceu para nós” – e de uma Mãe enlevada, para quem nem a precariedade das circunstâncias impede ou diminui a ternura. Mas se quisermos celebrar o Natal ao ritmo da nossa fé, inserido no caminho progressivo da nossa transformação e da nossa busca de santidade, temos de ir muito além desse quadro de beleza que a tradição cultural exprime e veicula. E para isso, temos de fazer do Natal a festa da descoberta de Jesus Cristo, do encontro com a salvação. O Natal reveste-se da mesma exigência de descoberta e de conversão, que nos são comunicados na festa da Páscoa. E só podemos chegar a essa profundidade através da liturgia, que é sempre a celebração da Páscoa, e da própria Palavra de Deus.
Começámos por escutar o Profeta Isaías que anuncia o nascimento do Messias como salvador e libertador. O Povo que Ele vem salvar é o Povo de Israel, o Povo escolhido por Deus. A situação presente desse povo está longe da harmonia messiânica prometida: é um povo que andava nas trevas; foi escravizado e dominado por outros povos; sofreu a dureza e a violência da guerra. O Messias esperado será luz nas trevas, quebrará o jugo do opressor, implantará a paz. O Messias será o Príncipe da Paz. O nascimento do Messias será, na perspectiva do Profeta, o cumprimento da promessa de Deus e a realização de um anseio profundo de muitos corações. Mas seriam muitos os que desejavam o Messias? Pela boca do mesmo Profeta eles eram, sobretudo, os “pobres de Yahwé”, constituíam no meio do Povo descrente e acomodado às circunstâncias históricas, um “resto fiel”, que acreditava na fidelidade de Deus à promessa e mantinha viva a chama da esperança. A esse resto fiel pertenciam, certamente, os pastores de Belém. Não é à multidão, que vagueia nas ruas da cidade em tempo de recenseamento, que o Anjo é enviado a anunciar a grande alegria. Para aquela multidão aquele recém-nascido, se dessem por Ele, era apenas o filho de um casal de forasteiros que se desembaraçou como pôde. Eles não acolheriam aquele anúncio da alegria, certamente porque muitos já não a desejavam nem tinham dela notícia.

2. Ouvimos, em segundo lugar, um texto de Paulo, e neste Ano Paulino, estamos particularmente atentos à sua mensagem. Alarga-se o horizonte da realidade humana referida: já não se trata apenas do Povo de Israel, mas de toda a humanidade, concretizada para Paulo no vasto mundo greco-romano, que ele calcorreara para anunciar a alegria da salvação. Era um mundo complexo. Paulo sugere, nesta Carta a Tito, algumas das suas características: a impiedade. Não era por falta da religião. A profusão de religiões e de deuses não levava o homem religioso à piedade, isto é, a abrir-se ao louvor do Deus vivo, o único que nos pode salvar. A injustiça: basta pensar na escravatura e na pobreza em que viviam vastos estratos da população. Os desejos mundanos: é próprio de uma cultura de progresso que o Império Romano protagonizava, fixar o coração em desejos realizáveis nesta vida. Era uma civilização que explorava o prazer, mesmo que fosse à custa dos outros.
É a esse mundo, difícil e complexo, que é preciso anunciar Jesus Cristo, não já o Menino de Belém, mas Cristo morto e ressuscitado. Paulo sabe que foi na Páscoa que “se manifestou a graça de Deus, que traz a salvação para todos os homens”. Acolher o anúncio de Jesus Cristo com alegria é o despertar da fé e esta significa rever totalmente a vida; é começar de novo. E esse homem novo que nasce do encontro com Cristo não pode ter o espírito deste mundo. Tem de vencer a impiedade e encontrar-se com Deus a ponto de aprender a louvá-l’O; não pode alimentar desejos mundanos, mas purificar as expressões da felicidade e da alegria; tem de abraçar com todo o coração a causa da justiça, descobrindo que há sintonia entre a verdadeira justiça e o que Deus deseja para o homem.

3. Celebramos o Natal dois mil anos depois, porque acreditamos na actualidade de Jesus Cristo e na urgência da salvação; celebramo-lo numa sociedade cuja cultura foi marcada pelo cristianismo, numa Igreja, aquele Povo “que Ele purificou para Si Mesmo, um Povo especialmente Seu”. Mas os traços que Paulo identifica na sociedade greco-romana, agravaram-se no mundo contemporâneo. A impiedade concretiza-se na negação de Deus, na irrelevância em que é tida a acção de Deus para a realização do homem; a injustiça ganhou dimensões gigantescas, tornou-se desigualdade chocante, exprime-se na violência e na corrupção; o abandono aos desejos mundanos anulou o espaço da exigência moral no exercício da liberdade. Usando a linguagem de Paulo, estamos neste mundo ao qual somos enviados, “enquanto aguardamos a ditosa esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo”.
Sabeis o que torna difícil a verdadeira celebração do Natal? É que não são muitos os que desejam encontrar-se com Jesus Cristo, não são muitos os que desejam a salvação. E sem esse desejo, Jesus Cristo, nascendo ou morrendo, e ressuscitando, nunca será o anúncio da alegria definitiva. Já em Belém, o Anjo não procurou na grande cidade a quem anunciar a boa-nova; foi ao encontro dos pastores, membros do tal “resto fiel”. Mas depois da Páscoa, os Apóstolos são enviados à grande cidade, sabendo que a boa-nova anunciada não será acolhida por muitos, mas será a resposta para quem acalenta no seu coração desejos e anseios, interrogações de vida a que só Jesus Cristo pode responder. E nós, os cristãos, que celebramos o Natal, desejamos sinceramente encontrar-nos mais profundamente com Jesus Cristo? Já vencemos verdadeiramente a impiedade? Já não corremos atrás de desejos mundanos? A justiça que procuramos é aquela que está no coração de Deus e que só pode ser obra Sua, Ele que nos justifica em Jesus Cristo?

O Natal, como a Páscoa, é apelo à conversão, à profundidade, a viver a sério o que acreditamos e anunciamos. Naquela noite, em Belém, para que Deus fosse verdadeiramente louvado pelo nascimento do Seu Filho, foi preciso uma legião celeste fazer ouvir o Seu hino de louvor. Nesta noite, Deus espera esse louvor da Sua Igreja, o tal “Povo especialmente Seu”.